Desde
pequena pegar a estrada mexe comigo. E, bem, nessa vida cigana, desde sempre
cabriolando entre uma cidade e outra, um estado e outro, a estrada tem um papel
fundamental na formação do meu caráter. Muito tempo longe dela e coisas
esquisitas acontecem.
Não sei
se vou saber explicar, mas talvez o simples fato de que, sentada na poltrona do
ônibus, nesse quase não-lugar, entre um destino e outro, com toda a polissemia
que esta frase carrega: eu não precise ser nada além de passageira.
Fosse
aos oito anos, fluminense moradora da grande São Paulo com erres não-paulistas
muito bem pronunciados, corinthiana. Seja agora, com
quase 30 anos, com os erres corrompidos pela cidade de concreto, linguista,
feminista, professora, pesquisadora, “a menina da USP” (que uns mais de dez
anos antes, no colégio, também já foi “a menina da trufa” e que talvez volte a
vendê-las porque as pessoas parecem gostar mais de trufa do que de USP), filha,
companheira, nora, cunhada, amiga, vizinha, irmã, aluna, usuária do SUS. É um
alívio ter um intervalo e ser, no máximo, “poltrona 22, mas se quiser, eu
troco”.
Sabe,
por algum motivo, todas as vezes em que pego a estrada também penso na morte.
Talvez porque a morte seja esse grande momento de deixar de ser qualquer coisa.
Mas pensar por muito tempo na morte pode ser desesperador por ser um estado
que, uma vez alcançado, é permanente. Arre égua, néra isso que eu tava
precisando...
Viajar pela estrada, não. É ver as árvores, as plantações, os tipos de construção
e os sinais de vida pelas cidades em que o ônibus vai passando... tudo isso sem
que a minha presença exerça qualquer efeito mais direto nessas realidades, sem
que eu sequer pise meus pés em qualquer um desses lugares e sem nenhuma
viv'alma (fico particularmente satisfeita por finalmente conseguir incluir essa
expressão em algum texto escrito) para me inquirir a ser coisa alguma. É um
vazio cheio de conforto.
Só que
oh, uma vez fui para Brasília de ônibus. Mais de 12h de viagem. Quando cheguei,
verdade seja dita, que delícia foi voltar a ser eu, seja lá o que isso
signifique. É que o meu eu passageiro(a) parecia estar prestes a ficar sem
pernas, depois de tanto tempo sentada.
“Há muito tempo que o
Alasca atrai sonhadores e desajustados, gente que acha que a vastidão imaculada
da Última Fronteira irá preencher todos os vazios de sua vida. Porém, o mato é
um lugar que não perdoa, que não dá a mínima para a esperança ou desejo” (p.10).
Na Natureza Selvagem
(Into The Wild) é um livro-reportagem escrito pelo jornalista Jon Krakauer que conta
a história de Cristopher MacCandless, um jovem que ficou conhecido
nacionalmente em 1992 por ter largado tudo para trás e morrido no ônibus abandonado
142 de Fairbanks, em meio a sua aventura pela trilha Stampede no Alasca, onde
pretendia viver por algum tempo de caça e colheita.
Christopher era um
jovem de classe média alta, criado no subúrbio de Washington que
abominava o estilo de vida de seus pais e o american
way of life como um todo. Depois de sua formatura na Universidade de
Atlanta, doou todos os 24 mil dólares de sua poupança para uma instituição
filantrópica e partiu para concretizar seu plano de realizar a trilha de
Stampede com o menor número de recursos materiais possíveis, vivendo
essencialmente daquilo que fosse fruto de seu esforço pessoal.
Ok.
Eu sei que nesse ponto do texto você deve tá já meio puto com esse que agora
considera um moleque mimado que não sabe nada da vida e que poderia
tranquilamente estar numa daquelas reportagens bunda de gente com cara de
modelo que “largou tudo para viajar”. Eu também tive essa resistência e até o
final do livro tive sentimentos dúbios com relação ao Cristopher, mas acho que
a história é mais interessante do que isso. Cristopher ficou famoso diante de
seu fracasso e não pela plasticidade inalcançável da beleza e sucesso de toda
uma legião de blogueiros “mochileiros”.
É relevante dizer que a
viagem de Cristopher não foi um ato de impulso. Tudo indica que mesmo durante
seu período de faculdade, enquanto morava sozinho, já vivia de maneira bastante
minimalista. Seu quarto era hermeticamente limpo, mas não tinha muito mais do
que um colchão, uma mesa e livros. Ele planejou sua ida durante um bom tempo e
realizou um nível razoável de pesquisa antes de partir.
Uma vez tendo entregado
o diploma aos pais, Cristopher escreveu uma carta a sua irmã Carine e caiu na
estrada sem dizer a ninguém para onde ia ou quando voltava. Quando seu carro,
um antigo Datson comprado alguns anos antes com o dinheiro guardado que havia
recebido por alguns trabalhos, ficou preso em uma enchente a caminho de seu
destino, Cris resolveu não só deixar o carro e quase todos seus pertences para
trás como também todo o dinheiro que tinha em sua carteira, 123 dólares, os
quais ateou fogo e tirou uma foto. Seguiu para a estrada com uma mochila
contendo alguns poucos quilos de arroz, alguns livros, sua câmera e outros
poucos itens.
Cris era um rapaz com o
caráter formado por leituras de autores como Tolstoi, Jack London e Thoreau. Ao
longo de todo o livro, Jon Krakauer apresenta trechos sublinhados por Cris nos
livros que haviam sido encontrados com ele dois anos e alguns meses após sua
partida. Dentre eles, está um trecho de Felicidade Familiar de Tolstoi que não
carece de maiores explicações:
“Eu queria movimento e
não um curso calmo de existência. Queria excitação e perigo e a oportunidade de
sacrificar-me por meu amor. Sentia em mim uma superabundância de energia que
não encontrava escoadouro em nossa vida tranquila.”
Daquele momento em
diante, Cristopher passou a se identificar como Alexander Supertramp. Viveu os
próximos dois anos na estrada se preparando para sua aventura na trilha
Stampede, percorrendo o território estadunidense, pedindo carona nas estradas e
caminhando grandes distâncias. Durante esse período, Alex trabalhou em diversos
lugares, dentre eles, em uma franquia do McDonalds como chapeiro e como faz
tudo consertando escavadeiras na pequena cidade de Cartago, na Califórnia.
Todos os relatos ao
longo do livro indicam que Cris era um rapaz tremendamente inteligente e
agradável, mas que tinha certo apreço pela solidão e alguma dificuldade com a
ideia de criar raízes. Cris parecia ter horror à trivialidade da rotina e
desejava buscar por aquilo que fosse de mais essencial, dessa forma, tentava o
tempo todo se desprender de tudo que aparentasse ser uma maneira de se manter
em uma existência mediana naquele momento de sua vida.
Ao longo de seus dois
anos de estrada, Cristopher viveu uma vida intensa e povoada ao mesmo tempo por
muitas pessoas e muita solidão. Embora o rapaz tenha conhecido diversas pessoas
com as quais desenvolveu afinidade, passou muito tempo completamente sozinho. Depois
desses dois anos, Cris conseguiu finalmente chegar a seu destino original, a
trilha Stampede. Lá viveu por 2 meses de caça e plantas e foi encontrado morto,
121 dias depois de sua chegada. Ao longo de seu diário, encontram-se relatos de
absoluto êxtase e contemplação, introspecção e solidão. Em um de seus últimos
escritos, “(...) em letras de forma meticulosas numa página arrancada de Taras
Bulha, de Gogol, ele diz:
S O S. PRECISO DE SUA
AJUDA. ESTOU FERIDO, QUASE MORTO E FRACO DEMAIS PARA SAIR DAQUI. ESTOU SOZINHO,
ISTO NÃO É PIADA. EM NOME DE DEUS, POR FAVOR FIQUE PARA ME SALVAR. ESTOU
CATANDO FRUTAS POR PERTO E DEVO VOLTAR ESTA TARDE. OBRIGADO.
Ele assinou o bilhete
‘CHRIS MCCANDLESS, AGOSTO?’. Reconhecendo a gravidade de sua situação,
abandonou o apelido pretensioso que vinha usando havia anos, Alexander Supertramp,
em favor do nome que recebeu de seus pais ao nascer” (p.128).
Apesar do desespero expresso
nesse bilhete, além do simples contar dos dias registrados no papel, Cris fez
duas anotações. Uma delas sobre seu maravilhamento diante de frutas que havia
encontrado e outra dizendo que teve uma vida feliz e agradecia à deus. As
últimas fotos encontradas no filme de sua máquina registram seu corpo
tremendamente magro e já desnutrido, mas sempre um sorriso no rosto e um olhar
quase sempre tranquilo. Quem lê seu diário e vê suas fotos acredita que Cris
morreu não com pena de si mesmo, mas em paz.
Este livro inspirou um
filme de mesmo nome e, embora eu goste muito do filme, devo dizer que o livro
trás consigo um diferencial importante, Jon Krakauer. A sensibilidade do autor
ao construir a narrativa do livro composto por trechos do Diário de Cris, feito
no livro de botânica levado pelo rapaz como guia para sua alimentação durante a
viagem, as cartas trocadas entre Alex e os amigos que fez ao longo de sua
jornada e os relatos desses amigos e da família MacCandless entrevistados por
Krakauer são de uma sensibilidade imensa. Além disso, o autor traz também
algumas outras histórias de jovens em diferentes épocas que sumiram em busca de
uma aventura que os levasse ao limite, inclusive dele próprio. É bastante óbvia
a identificação do jornalista com Cris e se você é alguém que algum dia já desejou
seriamente se jogar no mundo, provavelmente vai se identificar de alguma
maneira também.
Cartão postal enviado por McCandless ao seu amigo Burres
Desde quando saiu como
reportagem na revista Outside, a história de Cris evocou diversas cartas de
pessoas do país todo com os ânimos à flor da pele. Eu particularmente me
solidarizei com o desespero dos pais dele em certo ponto do livro (acho que
estou ficando velha), mas a maioria das cartas parecia estar obstinada a
condenar o rapaz como o maior e mais estúpido pecador de todos os tempos,
embora tenha conseguido sobreviver 2 anos na estrada, 2 meses na trilha
Stampede e tenha morrido por conta de um descuido pouco óbvio. A irritação de
alguns leitores direcionada a Cristopher faz parecer que era pessoal. Talvez,
afinal de contas, como diz Krakauer, essa irritação seja fruto de algum nível
de identificação com o rapaz, em quem os leitores conseguem ver algo de suas
juventudes, uma vez que ‘(...) o comportamento de risco é um rito de passagem
em nossa cultura, não menos do que na maioria das outras” e vários de nós temos
histórias provavelmente menos ousadas do que a de McCandless para contar, mas
igualmente perigosas.
Àqueles que acreditam
que estraguei o livro porque contei spoiler demais, digo que definitivamente o
que há de mais interessante na obra são o processo de travessia e todas as
pequenas histórias que compõem o seu todo.
Deixo aqui por fim uma das músicas preferidas de
Cristopher McCandless, King of the Road
de Roger Miller: